quinta-feira, 25 de junho de 2009

Promessa é Dívida

Ele era Recife e Recife era ele. Criado em vários lugares mas estabelecido e decidido a viver aqui por vontade própria pelo resto da vida.

Trinta anos, trabalhava como designer, ganhava uma grana boa e tinha autonomia na utilização do seu tempo. Por isso respirava a cidade e ela circulava nas veias.

O que quero dizer, é que Luciano aos dezenove anos ao se mudar com a família para a capital pernambucana, se apaixonou completamente, nunca tinha sentindo efervecência cultural igual... A cidade tem tantos sons, tantos gostos e cores... ele podia afirmar com conhecimento de causa que era único mesmo... já tinha morado em São Paulo, Rio, Londres e Nova York.

Todas essas cidades eram maravilhosas, mas nenhuma tinha a lama e o caos de que Chico Science falava. Por isso, após 11 anos aqui, ele se sentia de fato em casa.

Dia de terça-feira a noite estava sempre no Pátio de São Pedro, escutando os afoxés. Nas quartas-feiras era noite de dançar o forró mais legítimo no Xinxim da Baiana em Olinda.

Sexta-feira você sempre ia encontrar Luciano no Recife Antigo curtindo o som do Traga a Vasilha.

No sábado ele variava... era tanta coisa que se podia fazer no sábado... as vezes o coco no bairro de Guadalupe, cerveja gelada na Bodega de Veio, etc etc. Domingo era dia de se queimar na praia de Boa Viagem, mas ele não gostava de ficar no Acaiaca, ali normalmente só a playboyzada acéfala se reunia... o negócio era ficar mais pra frente, na sussa, olhando o movimento, escutando um som e conversando com quem valia a pena.

O trabalho era bom, ele fazia o que gostava, ganhava bem, tinha tempo livre, a cidade era massa. O coração as vezes estava vago e as vezes não.

Mas o fato mesmo é que Luciano só tinha uma mulher certa até o fim da vida. Aos 30 anos, ele fez promessa, no dia de Nossa Senhora da Conceição ele prometeu que Recife seria sua mulher, só haveria de casar com essa cidade e com mais ninguém. Chegou cedo e lá debaixo da ladeira fumou um baseado e tomou alguns tragos de cachaça. Eram muitos romeiros, pessoas de muita fé que vinham agradecer e se martirizar pelas mais diversas graças concedidas pela santa. Já bastante alcoolizado Luciano enfrentou o mar de gente que se vestia de branco e de joelhos subiu até em cima do morro. Joelhos não haviam mais, mas ele estava feliz porque tinha concluído aquilo que entendia como seu desafio pessoal.

Isso mesmo, desafio pessoal, pois embora Luciano tivesse adoração pela cidade ele não era um homem de fé, ele era de certo modo um cético, que respirava tudo e curtia tudo, mas mantinha um olhar distanciado do aspecto religioso das coisas...

Acontece que promessa é dívida e não é preciso que acreditemos nas coisas para que elas sejam verdade, elas apenas são, independente e indiferente a nossa concepção.

Naquela noite, Luciano chegou em casa sem se lembrar como, joelhos esfolados e ensangüentados, febre que não cessava e uma dor de cabeça como ele jamais havia sentido antes. Deitou-se na cama imundo e desnorteado como estava e tentou dormir, mas não conseguiu. Pensamentos confusos se passavam por sua mente e imagens das mais diversas apareciam... um mar de gente, rostos, roupas brancas, cheiro de suor, mãos enrugadas,lagrimas, terços, sorrisos e gargalhadas de um morro que parecia abrir sua boca numa mistura de escárnio e total desespero num desejo de engolir Luciano...

Assim foi a noite toda até que o dia raiou. Uma paz súbita invadiu seu coração. Já não sentia dores na cabeça, a febre se foi e seus joelhos misteriosamente não tinham se quer um arranham.

Feliz por estar bem, mas incrédulo por não entender como, ele saiu apressadamente de casa e foi trabalhar. Ao entrar em seu carro e olhar pelo retrovisor não viu seu rosto... o que ele viu foi....

-Não. Não dava pra acreditar. Não era seu rosto, era a cidade, seu rosto não havia mais. O que se via era a cidade, suas ruas, vielas, praças e toda a gente nela, seus cheiros, favelas, prazeres e horrores.


Promessa é dívida.

Um comentário:

  1. É a vida... mas é fato que numa relação tão forte assim é meio dificil manter sua identidade. Normal, é só não chegar ao ponto de perdê-la por completo como o pobre Luciano fez.... u.u

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