terça-feira, 24 de março de 2009

O contador

Ele sempre foi pragmático, mesmo quando pequeno nunca se preocupou muito em entender os porquês. Queria obter os resultados e só. Esse era o foco.

Sua forma direta de pensar o levou a ter bom desempenho escolar com números. Aos 23 anos já estava formado em contabilidade e trabalhava num grande e conhecido escritório de contabilidade na cidade do Recife.

Nunca se casou (sempre achou que as mulheres são extremamente complexas, exigem muita atenção e cuidado, nunca estão satisfeitas, choram, perguntam demais e claro, tem TPM). Por isso, preferia ter relações curtas, que ele, acabava rapidamente assim que se tornavam um incômodo.

Ganhava a vida tratando dos valores monetários que empregados de empresas tinham direito a receber, seja por anos de serviço, seja por indenizações, etc.

O lema do escritório era um só: Faça os cálculos com cuidado e atenção para que as empresas contratantes sempre tenham de pagar o mínimo possível aos empregados descontentes.

Nunca se questionou a respeito do serviço que produzia, apenas gostava de ser o melhor. E era. Mas, o tempo passou, e hoje já está com 58 anos. Trabalhando na mesma empresa, porém num cargo de diretoria, fato esse que embora lhe garantisse um salário bem mais generoso, lhe deixava profundamente descontente, pois precisava tomar decisões que muitas vezes exigiam reflexões sobre o futuro do escritório. E muitas dessas decisões não tinham relação direta com números.

Mas hoje, ainda em casa, após acordar, sentiu, um sentimento, que não estava muito bem acostumado, não sabia para onde ia, nem o porque. Um aperto no coração, uma mistura de euforia, alegria e tristeza e uma súbita vontade de chorar. Achou um pouco patético, não experimentava aquilo desde... desde... o seu aniversário de 7 anos de idade, dia em que sentiu-se estranhamente humano.

É que seu avô havia lhe dado uma flauta pan como presente de aniversário. Uma flautinha de plástico, de 12 furos que produzia sonoridade bastante característica. Nesse dia ele foi extremamente feliz, tocava o instrumento aleatoriamente e se encantava com os sons que produzia. Para ele, todos esses sons eram melodias que, na sua cabeça, se encaixavam perfeitamente e expressavam sua interação com o mundo. Percebeu ali o quanto seu avô o amava. E viu no rosto do velho, um grande sorriso de satisfação, que ficou guardado no fundo de sua cabeça.

Ter mentalmente revivido todo esse redemoinho de lembranças e sensações, fez com que buscasse, debaixo de sua cama, a velha caixa a onde, ainda guardava algumas poucas recordações do seu passado, dentre elas a flauta pan, e um retrato seu ao lado do velho que lhe sorria sereno.

Foi trabalhar normalmente, carregava no bolso do paletó a flauta, que colocou sob sua mesa assim que chegou ao escritório.

Abriu sua agenda, ligou o computador verificou as pendências do dia, pediu a secretária um café.... reunião às 9 com o atual dono da empresa, corte de custos, planilhas, empregados que solicitam aumento, fofocas de escritório, bláblá bláblá bláblá...

Fazia muito calor em Recife, era um dia lindo, numa cidade linda, o terno lhe pesava uma tonelada, e o suor começou a pingar. Escorria primeiro das laterais da cabeça, pegando pelas têmporas e descia pescoço abaixo, molhando o colarinho... aquilo não era normal. Ele não era normal... aquelas pessoas... não eram normais... aquelas conversas... aquelas preocupações... nada daquilo era belo... nada daquilo valia... Ele tinha trabalhado 35 anos sem pensar, 35 anos... 420 meses, ao menos, 12.600 dias...302.400 horas! De números... de números e nada mais... O que diria seu avô? O que diria aquele menino que ele uma dia foi? O que ele poderia ser hoje? E o que não foi?

Grande feito! O melhor contador do escritório! O mais eficiente! Centenas e centenas de empresas beneficiadas e satisfeitas... vidas e vidas frustradas, limitadas, encurtadas... por números.

Tirou o terno rapidamente, ficou de cuecas e meias apenas, pegou a flauta e as chaves do carro. O fim da tarde estava chegando... queria ver o mar e o sol se deitar por trás dos feios arranha-céus que teimavam em desafiar Deus na orla de Boa Viagem.

Colocou a flauta na boca e tocava acordes mágicos enquanto olhava bem nos olhos de cada um dos colegas de trabalho e dizia:

- Dona Cláudia, sorria, esse é pra você

- Oscar, esse aqui é pra você...

- Patrícia... João... Maria...

E assim foi até pegar o carro... dirigiu até a orla, entrou no mar sentindo a água morna e gostosa enquanto tocava sua flauta pan, tinha a certeza de que o velho ficaria feliz, e sorriria mais uma vez para ele. De costas para o mar, mas curtindo a água... sorria e tocava sua flauta pan e via o sol se por por trás dos feios arranha-céus que teimavam em desafiar Deus na orla de Boa Viagem.

Sabia que agora poderia contar... histórias.

quinta-feira, 19 de março de 2009

A Bailarina

Acordou cedo, tomou café como de costume, e devido aos maus hábitos da vida moderna, foi direto para o pc... abriu o orkut, era um dia comum, era um dia, como todos os outros dias. Estava na expectativa de ver algum recado novo, de algum amigo velho (ou de algum velho amigo).

Mas ao abrir a página, encontrou um recado. Um perfil sem nome,uma foto de uma menina fazendo um passo de balé... um número de telefone e a frase: “quero dançar com você...” logo abaixo, tinha o link para uma música, ele abriu o link e a melodia era belíssima e de uma suavidade... ele estava em transe, sentiu uma paz enorme e sua mente se fixou na letra que dizia assim:

“I can fly But I want his wings
I can shine even in the darkness
But I crave the light that he brings
Revel in the songs that he sings
My angel Gabriel…”

Embora estivesse impressionado com todo o acontecido sentia-se de certo modo incrédulo, e tinha a sensação que isso poderia ser uma simples brincadeira de alguém... ou talvez uma ex-namorada que estava talvez, tentando uma reaproximação, através de uma forma não convencional....

Achou que pensava demais e que o melhor era ligar para o número, e tentar assim, colocar um ponto final em todo esse mistério... Mas era muito cedo... 5:50 da manhã ainda... não se deve ligar para alguém num horário como esses, afinal, nem todo mundo é maluco (o suficiente como ele) para estar de pé essas horas... Torturou-se até as 8 horas da manhã tentando imaginar possibilidades que explicassem toda essa situação peculiar... obviamente, não conseguiu encontrar explicação. Mas, finalmente eram 8 horas e ele decidiu ligar.

O telefone começou a tocar, alguém atendeu e ele precipitadamente disse:

-Alô?

-Oi! Finalmente você ligou! Porque não ligou mais cedo?

-Como assim? Ligar mais cedo? Porque me adicionou no orkut? Você me conhece? Quem é você? Eu não reconheço a sua voz...

-Não, você não me conhece, e eu também não te conheço embora eu tenha quase certeza de que você acorda bastante cedo e por isso, estava esperando você ligar... Está vendo só? Você não é o único louco....

-Mas como assim? Como você sabia?

-Eu não sabia, apenas sinto as coisas, e achei que você ligaria, e achei que você ligaria cedo, e achei que agora, quando o telefone tocou, seria você. E eu acertei não é mesmo?

-É é verdade, acertou mesmo... mas, bem, quem é você? Porque me adicinou no orkut? Qual a explicação de tudo isso?

-Bem, na verdade, isso tudo não precisa ter uma explicação. Porque tudo precisa ter uma explicação? A gente é criado dentro de um mundo em que desde pequenos, tudo precisa ter uma lógica, uma explicação, uma razão. Só se faz uma coisa se existir uma razão para fazer... então que tal agora, eu e você sermos cúmplices e fazermos algo sem explicação? Sem razão?

-Hum... estou entendendo. E estou concordando... mas então qual o seu nome?

-Meu nome? Que nome você gosta?

-Eu gosto de... Kaliandra... Kaliandra com “K”

-Meu nome é Kaliandra, Kaliandra com “K” e o seu nome, é Gabriel ok?

-Ok.

-Gabriel, hoje, é sábado são 8 horas da manhã, o que você está fazendo em casa? Porque você não aproveita pra ir a praia ou visitar alguém que você não vê a muito tempo?

-Visitar alguém?

-Isso, e fala que eu mandei lembranças.Você faz isso?

-Faço, vou fazer isso sim.

-Então Carpe Diem. E que tal encontrar comigo hoje no Marco Zero?

-Que horas?

-23:00 horas.

-Porque 23:00 horas?


-Não sei ao certo, talvez porque gosto de números que somados dão 5, cinco a gente conta com uma mão, são os dedos que fazem uma mão completa. Com uma mão, a gente cumprimenta, xinga, agradece, bate, elogia e faz gozar... não é perfeito?

-É sim, mas de certo modo, já estamos partindo para a lógica não acha? Sabe porque? Porque podemos fugir dela o quanto quisermos mas vamos precisar ao menos de um mínimo dela para não batermos a cara contra o muro...

-É verdade, mas então vamos tentar permanecer no mínimo necessário ok? E tem outra coisa, talvez eu não goste de números que somados dão cinco, apenas pensei num horário qualquer, e depois acabei imaginando algo para dizer já que você insiste tanto em porquês...

-Ok.

-Eu vou estar usando uma saia com estampa de flores tá? E eu tenho o cabelo vermelho, bem vermelho.

-Hum ok, eu vou estar usando uma bermuda verde e uma camisa preta... e... bem, você viu meu orkut, sabe como eu sou...

-É eu sei sim, mas com relação ao cabelo, esqueça, porque pensando bem, eu não sei que cor ele vai estar, talvez esteja azul... ou laranja... mas a saia vai ter estampa de flores.

-Combinado.

Naquele dia, “Gabriel” encontrou-se com “Kaliandra com K” no marco zero as 23:00 horas, números esses que somados, totalizam 5.

Ela era bailarina, ou ao menos era isso que ela era naquela noite, e de fato eles nunca haviam se encontrado antes. Gabriel era arquiteto, ou ao menos, era isso que ele era naquela noite.

O combinado foi que eles se veriam apenas naquela noite, e nunca mais procurariam um ao outro. Porque queriam dar o melhor de si para o outro, e isso infelizmente a gente só faz, quando tem a certeza de que jamais vai precisar dar satisfações no dia seguinte. Decidiram que do momento que estavam juntos, até o raiar do dia, um seria exatamente o que o outro desejava, sem cobrança, apenas pela sublime vontade de ver o outro sorrir. Por terem a percepção de que a lógica, o pudor e a vergonha eram coisas secundárias vivenciaram a plenitude do ser humano por uma noite e se amaram como nunca haviam amado ninguém antes. Talvez aos olhos dos demais, aqueles tenham sido momentos ridículos visto que eu, você e toda a sociedade está, constantemente, vigiando e sendo vigiados, numa cobrança eterna pelo bom senso, pela lógica, e pela estética perfeita. Eles não. Tiveram o seu momento de liberdade e gozaram desse momento ao máximo, sem regras fixas, numa busca real da satisfação do outro. E isso foi uma realização carnal tão intensa que não se pode explicar em palavras... e o mais “ilógico” e paradoxal de tudo isso, é que foi também uma experiência divina, um religare com o uno. Algo que poucos mortais tem a oportunidade de vivenciar...

Naquele noite, duas almas se perderam para poder se encontrar, e foi lindo. E um domingo completamente diferente dos outros domingos e de qualquer outro dia,nasceu ali.